Quitação prévia de encargos para renegociação das dívidas rurais: exigência ilegal da Resolução CMN 5247

29 de outubro de 2025
4 visualizações

Imagine que o presidente do sindicato rural da sua região o procure anunciando uma ótima notícia: foi decidido pela diretoria eleita que você, entre outros produtores, poderá adquirir um trator em condições especiais — juros reduzidos e prazos facilitados — justamente para amenizar as perdas de safra que sofreu.
Para não deixar dúvidas, ele entrega até um documento formalizando a promessa.

Na sequência, orienta-o a procurar a secretária do sindicato para alinhar os detalhes. Você reúne todos os documentos pedidos, comprova as perdas, atualiza o cadastro. Mas, ao chegar lá, descobre uma surpresa: só terá acesso ao trator se antes quitar todas as contas de energia elétrica em atraso no seu nome.

Exigência que não foi criada — e sequer mencionada — pelo presidente.

Faz sentido? A secretária poderia, por conta própria, inventar uma condição que não constava da promessa original e que, na prática, pode impedir o acesso ao crédito?

Pois é exatamente isso que ocorre quando a Resolução CMN 5247, para acesso à linha de crédito com recursos de fontes supervisionadas – crédito mais barato, exige o pagamento prévio dos encargos vencidos para acessar a linha de crédito criada pela MP 1.314. A Medida Provisória nasceu para trazer alívio; a Resolução, porém, levantou uma barreira que atinge justamente quem mais precisa: o produtor em sufoco econômico.

Vejamos o malfadado dispositivo da Resolução 5247:

“Para ter acesso à linha de crédito de que trata este artigo, no caso das operações em situação de inadimplência a que se refere o inciso I do parágrafo 1º, o mutuário deve pagar, até a data da contratação da nova operação, os encargos financeiros devidos referentes às operações a serem liquidadas ou amortizadas com essa linha de crédito.” (parágrafo 6º do artigo 1º da Resolução CMN 5247).

Você pode se questionar sobre qual o problema de essa exigência constar numa norma infralegal e não numa norma legal. Saiba que isso é muito problemático e até perigoso! Os riscos potenciais extrapolam o microssistema do crédito rural ou do agronegócio, pois podem afetar todos nós.

Ao longo dos séculos muita luta foi travada para que nossos direitos e obrigações fossem definidos por nós mesmos, por meio de representantes que nós elegêssemos. O contrário disso seria um monarca, rei, imperador, ou mesmo ditador, determinando o que podemos ou não fazer, definindo os direitos que temos ou não.

Muito sangue foi derramado para que não mais vivêssemos sob o império de reis, ditadores ou governos, mas sob o império da lei, e não qualquer lei, mas aquela aprovada por nós, por meio das pessoas que escolhêssemos para isso.

Assim, quando uma Medida Provisória, que tem o mesmo status de lei, define um direito, uma restrição ou uma obrigação, se não contrariar a Constituição Federal, ela será considerada válida porque emanou dos representantes eleitos pelo povo.

Porém, em muitos casos a norma legal não traz todos os aspectos e condições do novo direito, deixando para que aqueles que vão operacionalizar o direito, isto é, no nosso caso, aqueles que vão de fato “conceder os empréstimos”, definam os detalhes.

Em seguida, serão editadas – veja que não serão votadas, apenas editadas – normas para detalhar a operacionalização dos direitos e obrigações definidas pelos representantes do povo.

Tais servidores públicos, por não serem eleitos, devem atuar com máxima cautela para não extrapolar sua função de meramente regulamentar. Não podem nem criar direitos e tampouco criar restrições capazes de esvaziar os direitos definidos pelos representantes eleitos pelo povo.

Quando um dispositivo de lei, compatível com a Constituição Federal, estabelece um comando normativo, é estabelecida uma espécie de “moldura normativa” e o campo de ação do regulamentador infralegal é apenas e tão somente dentro dessa moldura. Tudo que extrapolar, será considerado ilegal.

Isso vale para todas as normas infralegais (decretos, resoluções, instruções normativas, portarias etc.). Elas precisam “jogar” dentro das quatro linhas do comando normativo estabelecido pela lei aprovada pelos representantes do povo.

No caso que estamos analisando, o parágrafo 6º do artigo 1º da Resolução CMN 5247, pretendeu regulamentar o parágrafo 1º do artigo 2º da MP 1314 que estabelece:

§ 1º  Somente poderão ser liquidadas com a linha de crédito de que trata este artigo as operações de crédito rural de custeio e investimento e as CPR, originalmente contratadas ou emitidas até 30 de junho de 2024 que estavam em situação de adimplência em 30 de junho de 2024, e que estavam em situação de inadimplência na data de publicação desta Medida Provisória, ou que tenham sido renegociadas ou prorrogadas com vencimento da parcela ou da operação previsto para o período compreendido entre a data de publicação desta Medida Provisória e 31 de dezembro de 2027 e estejam em situação de adimplência na data de contratação da operação para sua amortização ou liquidação.

Nada é dito sobre estarem pagos os encargos financeiros devidos. Foi uma inovação.

Os requisitos do parágrafo primeiro para utilização dos recursos supervisionados para liquidação de operações de crédito rural de custeio e investimentos e as CPR foram os seguintes:

– originalmente contratadas ou emitidas até 30.06.2024;

– que estavam em situação de adimplência (ou seja, sem atraso) em 30.06.2024;

– que estavam em situação de inadimplência (atraso…) em 05.09.2025 (data da publicação da MP);

– ou que tenham sido renegociadas ou prorrogadas com vencimento da parcela ou da operação previsto para o período compreendido entre 05.09.2025 e 31.12.2027 e estejam em situação de adimplência na data da contratação da (nova) operação para amortização ou liquidação.

Essas são as “quatro linhas” dentro das quais deveria limitar-se a Resolução do Banco Central.

Porém, cometeu “falta” (ilegalidade) ao exigir: “… o mutuário deve pagar, até a data da contratação da nova operação, os encargos financeiros devidos…”.

Vale considerar que de fato o parágrafo 5º do mesmo artigo 2º da MP 1314 delega um poder regulamentador quanto as:

1) condições;

2) encargos financeiros;

3) a remuneração das fontes de recursos;

4) prazos e as

5) demais normas regulamentadoras da linha de financiamento.

Porém, regulamentar significa preencher os vazios operacionais dentro dos parâmetros estabelecidos pela norma legal – no caso, pela MP.

Para as operações em atraso (situação de inadimplência), as duas “condições” já constam na MP:

  1. estar em situação de adimplência (ou seja, sem atraso) em 30.06.2024 e
  2. estar inadimplente (atrasada) em 05.09.2025.

Somente essas condições foram previstas nesse aspecto específico.

O acréscimo da resolução de que o mutuário em inadimplência deverá quitar pelo menos os encargos financeiros, foi totalmente inovador e ilegal.

Podemos dizer que uma norma que não é lei, criou a seguinte obrigação: para ter acesso aos recursos supervisionados, o produtor rural inadimplente precisa pagar os juros em atraso.

Porém, essa obrigação esbarra num dos pilares de praticamente todos os ordenamentos jurídicos de Estados que se dizem democráticos e “de direito”, que é o princípio da legalidade:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; (artigo 5º da Constituição Federal do Brasil)

A redação é clara: em virtude de lei e não de normas infralegais, como é uma resolução.

O Supremo Tribunal Federal, por meio do Ministro Carlos Velloso já asseverou:

“… a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é, na verdade, no sentido de que decreto regulamentar que vai além da lei, que extrapola a lei, não é inconstitucional, é ilegal.” (Ministro Carlos Velloso, ADI 673-8 – DF).

Conclui-se, portanto, que o parágrafo 6º do artigo 1º da Resolução CMN nº 5.247 extrapolou o poder regulamentar que lhe cabia, criando obrigação inexistente na Medida Provisória nº 1.314.

Trata-se, pois, de ato ilegal e inválido, por violar o princípio da legalidade e por esvaziar a finalidade social da MP, que é justamente auxiliar o produtor em dificuldade.

Cabe, assim, aos produtores rurais e às entidades representativas buscar o controle judicial dessa ilegalidade, garantindo a efetiva concretização dos benefícios previstos pela Medida Provisória.

Sobre o Autor

Henrique Lima

É advogado com atuação focada no atendimento a produtores rurais, empreendedores, empresas e grupos familiares com problemas jurídicos, especialmente em temas envolvendo direito agrário, contratual, dívidas bancárias, família, sucessões, tributário, direito e responsabilidade civil.

É mestre em direito pela Universidade de Girona – Espanha e com cinco pós-graduações (lato sensu). É sócio-fundador do escritório Lima & Pegolo Advogados Associados que possui unidades em Curitiba-PR, São Paulo-SP e Campo Grande-MS, com mais de 20 anos de existência, mais de 100 colaboradores e com clientes em todos os Estados brasileiros.

Contato

Vamos conversar sobre o seu caso?

Preencha o formulário para que alguém da nossa equipe possa entrar em contato com você.

    Exames, atestados, apólice, etc. e tudo que você acredita que possa me ajudar entender seu caso

    Ao preencher o formulário você concorda com os termos de nossa política de privacidade.