O agronegócio é uma atividade repleta de desafios, especialmente para os pequenos produtores rurais, que, por não disporem de muitos recursos tecnológicos e financeiros, ficam demasiadamente expostos às consequências das intempéries climáticas e das oscilações da economia mundial, não raras vezes ficando literalmente “nas mãos” de instituições financeiras e de fornecedores de insumos.
Felizmente, existe na Constituição Federal uma cláusula pétrea que garante a impenhorabilidade da pequena propriedade rural. Está no inciso XXVI do artigo 5º, nos seguintes termos:
Trata-se de importante conquista social, mas que precisa ser constantemente defendida, pois os detentores de capital não disfarçam a ânsia de retirar dos devedores até mesmo o mínimo para a sobrevivência sua e de sua família. Isso é uma atitude odiosa e rejeitada inclusive pela Sagrada Bíblia que, em Deuteronômio 24:6, orienta o credor a não aceitar como garantia as pedras de moinho para que o devedor não morra de fome ao perder sua fonte de renda.
– O que é uma pequena propriedade rural?
São comuns histórias semelhantes à de meu avô, que vendeu uma chácara em Santa Catarina e comprou fazenda no antigo Mato Grosso (antes da divisão do Estado). Isso já dava uma ideia de como o tamanho (por conta do preço e de outros fatores) das propriedades variavam de acordo com a região do país. E continua sendo assim.
Mas já respondendo à pergunta, atualmente, entende-se por pequena propriedade rural as com área de até 04 (quatro) módulos fiscais.
O tamanho do módulo fiscal é determinado pelo INCRA e varia entre 5 e 110 hectares, de acordo com o município localizado e, segundo o site da Embrapa, leva em consideração: a) o tipo de exploração predominante no município; b) a renda obtida no tipo de exploração predominante; c) outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda obtida ou da área utilizada; d) o conceito de “propriedade familiar”.
Voltando à história de meu avô, na região de Criciúma-SC – onde tinha suas terras – o módulo fiscal tem 14ha, enquanto em Pedro Gomes-MS – onde comprou à época – tem 60ha. Isso nos dias de hoje, mas provavelmente lá na década de 70 a diferença era ainda maior.
A fim de exemplificar ainda mais, vejamos a média do tamanho do módulo fiscal em alguns Estados brasileiros:
Vale frisar que a análise precisa ser feita por município e não por Estado, assim, os dados acima são apenas para ilustração. Interessante registrar que os Estados de Mato Grosso do Sul, Goiás e Ceará são os que apresentam maiores variações no tamanho do módulo fiscal de cada município. Vamos observar então, a realidade de alguns municípios do Mato Grosso do Sul:
Desse modo, se a propriedade rural, ainda que constituída de mais de uma matrícula, mas desde que sejam contínuas, possuir área inferior a 04 (quatro) módulos fiscais do município no qual está localizado, será protegido constitucionalmente conforme abordaremos mais detalhadamente abaixo.
– Proteção constitucional contra hipoteca e contra alienação fiduciária
Ao buscar crédito, quem está do outro lado da mesa quase sempre exigirá garantias de que receberá o valor emprestado. Assim, as duas formas mais frequentemente exigidas são as hipotecas e as alienações fiduciárias, em que pese, nos últimos anos essa última ter sido a preferida das instituições financeiras devido a celeridade nos procedimentos em caso de inadimplência. Contudo, com a vigência do Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23), a expectativa é que a garantia hipotecária volte a ser a preferência dos credores, especialmente por possibilitar mais de um empréstimo sobre o mesmo imóvel.
Independentemente disso, muitos pequenos produtores rurais acabam perdendo suas terras por desconhecerem a proteção constitucional aqui abordada ou por erroneamente acreditarem que deixaram de estar resguardados por terem concordado em ofertar a pequena propriedade rural como garantia hipotecária ou porque a cederam em alienação fiduciária.
Felizmente, os tribunais brasileiros são atentos a essa realidade e já decidiram que mesmo quando a pequena propriedade rural é dada em garantia, a impenhorabilidade se mantém, por se tratar de um direito indisponível. Vejamos uma relevante decisão do Supremo Tribunal Federal:
Nos casos de alienação fiduciária, apesar de haver alguma pequena divergência nos Tribunais de Justiça dos Estados, a grande maioria é no sentido de haver a mesma proteção, em que pese a propriedade do imóvel já ter sido transferida, pois se trata de direito indisponível. Nesse caso, o caminho é ingressar com ação anulatória do negócio jurídico ou mesmo do leilão extrajudicial.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais aborda de modo esclarecedor esse ponto:
Portanto, mesmo que o produtor tenha concordado em apresentar como garantia sua pequena propriedade rural, seja por hipoteca ou por alienação fiduciária, trata-se de negócio anulável e, assim, possível de ser revertido em favor do devedor. A proteção ao sistema de crédito, dentro da guarida da liberdade econômica é importante, entretanto, não mais do que a preservação da dignidade humana, que passa pela proteção aos meios capazes de assegurar a subsistência do núcleo familiar.
– O que é uma propriedade “trabalhada pela família”?
Convém observar que a Constituição Federal estabelece dois requisitos para que haja a proteção aqui analisada: 1) ser pequena propriedade rural, cujo conceito já vimos acima (até quatro módulos fiscais) e 2) e que a pequena propriedade seja trabalhada pela família.
Quanto a esse segundo aspecto, a jurisprudência não é pacífica quanto ao detentor do ônus de provar se a propriedade é trabalhada pela família ou não. Em outras palavras, é o devedor quem precisa provar que tira sua subsistência da pequena propriedade rural ou existe uma presunção legal que transfere ao credor a obrigação de provar o contrário?
Abaixo, uma amostra da divergência que existe até mesmo no Superior Tribunal de Justiça:
Diante dessa incerteza, o caminho mais cauteloso é o devedor fazer a prova de que trabalha a área que está sendo hipotecada ou que foi cedida em alienação fiduciária.
O fato de a propriedade ou parte dela estar arrendada não exclui a garantia de impenhorabilidade se for demonstrado que a respectiva renda é utilizada para o sustento da família.
Também não é exigência que o imóvel rural seja a única fonte de renda da família, pois deve ser levado em consideração todo o contexto e a relevância que a renda proveniente do imóvel tem na subsistência do núcleo familiar.
Assim, a prova de que a pequena propriedade rural é trabalhada pela família pode ser feita de diversas maneiras, como a apresentação de contrato de arrendamento, de parceria etc., notas fiscais que demonstram atividade rural, declaração de vizinhos de que a área é trabalhada pelo devedor e sua família, entre outras formas.
A ideia é demonstrar que a renda oriunda da pequena propriedade rural é indispensável ao sustento familiar.
– Já perdi minha pequena propriedade rural, o que ainda posso fazer?
Nem sempre o proprietário rural tem conhecimento desse direito antes de perder sua pequena propriedade. Às vezes, já sofreu com a penhora, com o leilão e, quem sabe, até mesmo já teve que desocupar a terra.
Contudo, felizmente, o direito prevê prazos dentro dos quais é possível reverter essa situação.
Em se tratando de imóvel perdido por conta de hipoteca, o prazo é de 4 (quatro) anos e inicia a partir da expedição da carta de arrematação. Se o caso foi de alienação fiduciária, com leilão extrajudicial, é possível sustentar o mesmo prazo de 4 (quatro), porém existem tribunais que entendem ser o prazo de 2 (dois) anos, por isso, importante ficar atento e agir o mais rápido possível.
ENFIM, diante de um cenário de repleto de instabilidades climáticas e econômicas responsáveis por dificuldades financeiras que impactam principalmente os pequenos produtores rurais, ganha relevância essa hiperproteção constitucional à pequena propriedade rural, ainda que o devedor tenha concordado em oferecê-la em garantia hipotecária ou em cedê-la em alienação fiduciária.