Pequeno proprietário rural, não perca seu imóvel por causa de dívidas!

27 de março de 2024
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O agronegócio é uma atividade repleta de desafios, especialmente para os pequenos produtores rurais, que, por não disporem de muitos recursos tecnológicos e financeiros, ficam demasiadamente expostos às consequências das intempéries climáticas e das oscilações da economia mundial, não raras vezes ficando literalmente “nas mãos” de instituições financeiras e de fornecedores de insumos.

Felizmente, existe na Constituição Federal uma cláusula pétrea que garante a impenhorabilidade da pequena propriedade rural. Está no inciso XXVI do artigo 5º, nos seguintes termos:

Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXVI – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento.

Trata-se de importante conquista social, mas que precisa ser constantemente defendida, pois os detentores de capital não disfarçam a ânsia de retirar dos devedores até mesmo o mínimo para a sobrevivência sua e de sua família. Isso é uma atitude odiosa e rejeitada inclusive pela Sagrada Bíblia que, em Deuteronômio 24:6, orienta o credor a não aceitar como garantia as pedras de moinho para que o devedor não morra de fome ao perder sua fonte de renda.

– O que é uma pequena propriedade rural?

São comuns histórias semelhantes à de meu avô, que vendeu uma chácara em Santa Catarina e comprou fazenda no antigo Mato Grosso (antes da divisão do Estado). Isso já dava uma ideia de como o tamanho (por conta do preço e de outros fatores) das propriedades variavam de acordo com a região do país. E continua sendo assim.

Mas já respondendo à pergunta, atualmente, entende-se por pequena propriedade rural as com área de até 04 (quatro) módulos fiscais. 

O tamanho do módulo fiscal é determinado pelo INCRA e varia entre 5 e 110 hectares, de acordo com o município localizado e, segundo o site da Embrapa, leva em consideração: a) o tipo de exploração predominante no município; b) a renda obtida no tipo de exploração predominante; c) outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda obtida ou da área utilizada; d) o conceito de “propriedade familiar”.

Voltando à história de meu avô, na região de Criciúma-SC – onde tinha suas terras – o módulo fiscal tem 14ha, enquanto em Pedro Gomes-MS – onde comprou à época – tem 60ha. Isso nos dias de hoje, mas provavelmente lá na década de 70 a diferença era ainda maior.

A fim de exemplificar ainda mais, vejamos a média do tamanho do módulo fiscal em alguns Estados brasileiros:

– Pará, em quase todo o Estado: entre 70 e 80 hectares (x 4 = 280 e 320ha);
– Tocantins, em todo o Estado: entre 70 e 80 hectares (x 4 = 280 e 320ha);
– Bahia, a maior parte do Estado: entre 55 e 66ha (x 4 = 220 e 260ha);
– Paraná, quase todo o Estado: entre 5 a 20ha (x4 = 20 e 80ha);
– Amazonas, quase todo o Estado: 100 e 110ha (x4 = 400 e 440ha);
– Rondônia, todo o Estado: 60 hectares (x4 = 240ha).

Vale frisar que a análise precisa ser feita por município e não por Estado, assim, os dados acima são apenas para ilustração. Interessante registrar que os Estados de Mato Grosso do Sul, Goiás e Ceará são os que apresentam maiores variações no tamanho do módulo fiscal de cada município. Vamos observar então, a realidade de alguns municípios do Mato Grosso do Sul:

– Campo Grande: 15ha (x 4 = 60ha);
– Água Clara: 35ha (x 4 = 140ha);
– Bandeirantes: 40ha (x4 = 160ha);
– Camapuã: 70ha (x 4 = 280ha);
– Dourados: 30ha (x4 = 120ha);
– Figueirão: 70ha (x4 = 280ha);
– Porto Murtinho: 80ha (x4 = 320ha);
– Santa Rita do Pardo: 35h (x4 = 140ha);
– Sidrolândia: 30ha (x4 = 120ha);
– Tacuru: 45ha (x4 = 180ha).

Desse modo, se a propriedade rural, ainda que constituída de mais de uma matrícula, mas desde que sejam contínuas, possuir área inferior a 04 (quatro) módulos fiscais do município no qual está localizado, será protegido constitucionalmente conforme abordaremos mais detalhadamente abaixo.

– Proteção constitucional contra hipoteca e contra alienação fiduciária

Ao buscar crédito, quem está do outro lado da mesa quase sempre exigirá garantias de que receberá o valor emprestado. Assim, as duas formas mais frequentemente exigidas são as hipotecas e as alienações fiduciárias, em que pese, nos últimos anos essa última ter sido a preferida das instituições financeiras devido a celeridade nos procedimentos em caso de inadimplência. Contudo, com a vigência do Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23), a expectativa é que a garantia hipotecária volte a ser a preferência dos credores, especialmente por possibilitar mais de um empréstimo sobre o mesmo imóvel.

Independentemente disso, muitos pequenos produtores rurais acabam perdendo suas terras por desconhecerem a proteção constitucional aqui abordada ou por erroneamente acreditarem que deixaram de estar resguardados por terem concordado em ofertar a pequena propriedade rural como garantia hipotecária ou porque a cederam em alienação fiduciária.

Felizmente, os tribunais brasileiros são atentos a essa realidade e já decidiram que mesmo quando a pequena propriedade rural é dada em garantia, a impenhorabilidade se mantém, por se tratar de um direito indisponível. Vejamos uma relevante decisão do Supremo Tribunal Federal:

PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. ART. 5º, XXVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. As regras de impenhorabilidade do bem de família, assim como da propriedade rural, aparam-se no princípio da dignidade humana e visam garantir a preservação de um patrimônio jurídico mínimo. 2. A pequena propriedade rural consubstancia-se no imóvel com área entre 01 (um) e 04 (quatro) módulos fiscais, ainda que constituída de mais de 01 (um) imóvel, e que não pode ser objeto de penhora. 3. A garantia da impenhorabilidade é indisponível, assegurada como direito fundamental do grupo familiar, e não cede ante gravação do bem com hipoteca. 4.Recurso extraordinário não provido, com fixação da seguinte tese: “É impenhorável a pequena propriedade rural familiar constituída de mais de 01 (um) terreno, desde que contínuos e com área total inferior a 04 (quatro) módulos fiscais do município de localização”. (STF – ARE 1038507 PR, Relator: Edson Fachin, Data de julgamento 21.12.2020, Tribunal Pleno).

Nos casos de alienação fiduciária, apesar de haver alguma pequena divergência nos Tribunais de Justiça dos Estados, a grande maioria é no sentido de haver a mesma proteção, em que pese a propriedade do imóvel já ter sido transferida, pois se trata de direito indisponível. Nesse caso, o caminho é ingressar com ação anulatória do negócio jurídico ou mesmo do leilão extrajudicial.

“Vale destacar que o entendimento não é afastado pela circunstância de se tratar de alienação fiduciária, haja vista que se trata de modalidade de garantia” (STJ – AREsp 2182241-RS)

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais aborda de modo esclarecedor esse ponto:

Ainda que haja peculiar natureza jurídica entre as garantias hipotecária e fiduciária, em se tratando de direito indisponível, é de rigor a aplicação analógica da impenhorabilidade do bem dado em hipoteca ao bem cedido em alienação fiduciária em garantia, com base na ratio decidendi das decisões das Cortes Superiores que privilegia a dignidade do devedor em detrimento da tutela de crédito – mesmo que a natureza do contrato firmado acarrete transferência da propriedade, em caráter resolúvel, ao credor fiduciário, tal característica não pode ser desassociada do contexto de fundo, não havendo que se falar em comportamento contraditório por parte do devedor fiduciante, mas sim em descumprimento dos devedores anexos à boa-fé objetiva pela instituição financeira. (TJ-MG – Agravo de Instrumento: 2731919-89.2023.8.13.0000, Relator: Des.(a) Tiago Gomes de Carvalho Pinto, Data de Julgamento: 29/02/2024, 16ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 01/03/2024)

Portanto, mesmo que o produtor tenha concordado em apresentar como garantia sua pequena propriedade rural, seja por hipoteca ou por alienação fiduciária, trata-se de negócio anulável e, assim, possível de ser revertido em favor do devedor. A proteção ao sistema de crédito, dentro da guarida da liberdade econômica é importante, entretanto, não mais do que a preservação da dignidade humana, que passa pela proteção aos meios capazes de assegurar a subsistência do núcleo familiar.

– O que é uma propriedade “trabalhada pela família”? 

Convém observar que a Constituição Federal estabelece dois requisitos para que haja a proteção aqui analisada: 1) ser pequena propriedade rural, cujo conceito já vimos acima (até quatro módulos fiscais) e 2) e que a pequena propriedade seja trabalhada pela família.

Quanto a esse segundo aspecto, a jurisprudência não é pacífica quanto ao detentor do ônus de provar se a propriedade é trabalhada pela família ou não. Em outras palavras, é o devedor quem precisa provar que tira sua subsistência da pequena propriedade rural ou existe uma presunção legal que transfere ao credor a obrigação de provar o contrário? 

Abaixo, uma amostra da divergência que existe até mesmo no Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. IMPENHORABILIDADE. EXPLORAÇÃO FAMILIAR. PRESUNÇÃO JURIS TANTUMÔNUS DA PROVA DO EXEQUENTE. DECISÃO MANTIDA. 1. A pequena propriedade rural trabalhada pela entidade familiar é impenhorável, mesmo quando oferecida em garantia hipotecária pelos respectivos proprietários. Precedentes. 2. Segundo a jurisprudência desta Corte, “em razão da presunção juris tantum em favor do pequeno proprietário rural, transfere-se ao exequente o encargo de demonstrar que não há exploração familiar da terra, para afastar a hiperproteção da pequena propriedade rural” (REsp n. 1.408.152/PR, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 1º/12/2016, DJe 2/2/2017). 3. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ – AgInt no AREsp: 1677976 SP 2020/0058635-9, Data de Julgamento: 26/10/2022, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/11/2022)

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA DE IMÓVEL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE. ÔNUS DA PROVA DO EXECUTADO DE QUE O BEM CONSTRITO É TRABALHADO PELA FAMÍLIA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. JULGAMENTO: CPC/2015. (…) 4. Na vigência do CPC/73, a Terceira Turma já se orientava no sentido de que, para o reconhecimento da impenhorabilidade, o devedor tinha o ônus de comprovar que além de pequena, a propriedade destinava-se à exploração familiar (REsp 492.934/PR; REsp 177.641/RS). Ademais, como regra geral, a parte que alega tem o ônus de demonstrar a veracidade desse fato (art. 373 do CPC/2015) e, sob a ótica da aptidão para produzir essa prova, ao menos abstratamente, é certo que é mais fácil para o devedor demonstrar a veracidade do fato alegado. Demais disso, art. 833, VIII, do CPC/2015 é expresso ao condicionar o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural à sua exploração familiar. Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma, o qual, repise-se, consiste em assegurar os meios para a manutenção da subsistência do executado e de sua família. 5. O oferecimento do bem em garantia não afasta a proteção da impenhorabilidade, haja vista que se trata de norma de ordem pública, inafastável pela vontade das partes. Precedentes. 6. A ausência de comprovação, pela parte executada, de que o imóvel penhorado é explorado pela família afasta a incidência da proteção da impenhorabilidade. (…) (STJ – REsp: 1913234 SP 2020/0185042-8, Data de Julgamento: 08/02/2023, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 07/03/2023)

Diante dessa incerteza, o caminho mais cauteloso é o devedor fazer a prova de que trabalha a área que está sendo hipotecada ou que foi cedida em alienação fiduciária. 

O fato de a propriedade ou parte dela estar arrendada não exclui a garantia de impenhorabilidade se for demonstrado que a respectiva renda é utilizada para o sustento da família.

(…) 2. Evidenciado nos autos que parte da propriedade rural foi arrendada e que o proveito econômico obtido é destinado à subsistência da família, deve ser reconhecida a impenhorabilidade do imóvel. 3. Agravo de instrumento conhecido e provido(…) (TJ-PR – AI: 00170490420218160000 Marechal Cândido Rondon 0017049-04.2021.8.16.0000, Data de Publicação: 21/06/2021)

(…) Destaco que o fato de o imóvel estar arrendado para terceiro não elide a impenhorabilidade do imóvel, tendo em vista que, deste contrato de arrendamento, a família retira o seu sustento. Precedentes deste Tribunal. (…) (TJ-RS – AI: 70078918273 RS, Diário da Justiça do dia 24/10/2018)

Também não é exigência que o imóvel rural seja a única fonte de renda da família, pois deve ser levado em consideração todo o contexto e a relevância que a renda proveniente do imóvel tem na subsistência do núcleo familiar.

(…) ÔNUS DO CREDOR DE DEMONSTRAR QUE NÃO HÁ EXPLORAÇÃO FAMILIAR DA TERRA. EXISTÊNCIA DE OUTRAS FONTES DE RENDA. DESNECESSIDADE DE QUE O TRABALHO DO IMÓVEL PROTEGIDO PELA IMPENHORABILIDADE SEJA A ÚNICA FONTE DE RENDA DA FAMÍLIA. EXCLUSIVIDADE DE FONTE DE RENDA, NÃO CONSTITUI EXIGÊNCIA PREVISTA EM LEI. 01. O reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural depende de seu enquadramento em área de até 04 (quatro) módulos fiscais e da utilização do bem para subsistência familiar, o que foi atendido no caso.02. Há presunção juris tantum de que a pequena propriedade rural é explorada pela entidade familiar, cabendo ao exequente demonstrar que a propriedade não é trabalhada pela família da executada.Agravo de Instrumento Provido. (TJPR – 16ª C.Cível – 0012020-07.2020.8.16.0000 – Guaraniaçu – Rel.: Desembargador Paulo Cezar Bellio – J. 06.07.2020) (TJ-PR – AI: 00120200720208160000 PR, Data de Publicação: 09/07/2020)

 Assim, a prova de que a pequena propriedade rural é trabalhada pela família pode ser feita de diversas maneiras, como a apresentação de contrato de arrendamento, de parceria etc., notas fiscais que demonstram atividade rural, declaração de vizinhos de que a área é trabalhada pelo devedor e sua família, entre outras formas. 

A ideia é demonstrar que a renda oriunda da pequena propriedade rural é indispensável ao sustento familiar.

– Já perdi minha pequena propriedade rural, o que ainda posso fazer?

Nem sempre o proprietário rural tem conhecimento desse direito antes de perder sua pequena propriedade. Às vezes, já sofreu com a penhora, com o leilão e, quem sabe, até mesmo já teve que desocupar a terra.

Contudo, felizmente, o direito prevê prazos dentro dos quais é possível reverter essa situação.

Em se tratando de imóvel perdido por conta de hipoteca, o prazo é de 4 (quatro) anos e inicia a partir da expedição da carta de arrematação. Se o caso foi de alienação fiduciária, com leilão extrajudicial, é possível sustentar o mesmo prazo de 4 (quatro), porém existem tribunais que entendem ser o prazo de 2 (dois) anos, por isso, importante ficar atento e agir o mais rápido possível.

ENFIM, diante de um cenário de repleto de instabilidades climáticas e econômicas responsáveis por dificuldades financeiras que impactam principalmente os pequenos produtores rurais, ganha relevância essa hiperproteção constitucional à pequena propriedade rural, ainda que o devedor tenha concordado em oferecê-la em garantia hipotecária ou em cedê-la em alienação fiduciária.

Sobre o Autor

Henrique Lima

  • Henrique Lima é advogado com atuação focada no atendimento a problemas jurídicos envolvendo divórcios, inventários, direito agrário, contratual, dívidas bancárias, tributário e responsabilidade civil.
  • Sócio-fundador da Lima & Pegolo Advogados Associados S/S.
  • Mestre em direito e pós graduado (lato sensu) em direito civil, constitucional, família e sucessões, consumidor e trabalhista. Autor e co-autor de livros jurídicos e também de desenvolvimento pessoal.
  • Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
  • Membro da Comissão de Direito do Agronegócio do Conselho Federal da OAB.
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