É uma garantia comum e, em alguns segmentos, a mais utilizada em empréstimos e financiamentos, como a compra de maquinários, veículos e imóveis, porém muitos produtores rurais ainda desconhecem os riscos reais da alienação fiduciária, em que pese estar presente cotidianamente em sua atividade, especialmente após a Lei do Agro (Lei 13.986/20) permitir sua utilização em CPR – Cédula de Produto Rural e até mesmo ter lavouras como objeto.
Basicamente, a alienação fiduciária é uma forma de garantir uma dívida. E, para o credor, provavelmente a mais eficiente. Funciona assim: você assina um contrato pelo qual o credor passa a ser dono de seu bem – fazenda, maquinários, casas etc., mas você continua usando-o normalmente, como se dono fosse. Porém, se você não pagar, o credor não precisa nem mesmo ir à justiça, basta fazer um simples e rápido procedimento no cartório para consolidar a propriedade. Feito isso, o credor utilizará os meios cabíveis para te tirar da posse do bem.
O Marco Legal das Garantias, Lei 14.711/23 que fez diversas alterações na Lei 9.514/97, indica o seguinte conceito para a alienação fiduciária:
Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.
Esse é o ponto crucial: o bem deixa de ser seu e passar a ser do credor, ainda que de forma resolúvel (isto é, se você quitar, volta para você).
Por que estou falando para você ter cuidado? Porque a partir do momento que atrasar a parcela, é muito rápido para o credor se consolidar como proprietário do bem e te tirar da posse dele.
E, por mais boa vontade, boa intenção e estabilidade que você tenha, imprevistos acontecem. Doenças, desemprego, acidentes, divórcios, desfazimento de sociedades, mudanças de tributação, interferências do Governo, problemas climáticos, pandemias etc. acontecem. Você não tem como ter certeza de que não passará por um período de dificuldade no decorrer do contrato.
Por exemplo, nenhum produtor rural quer passar por um processo de Recuperação Judicial, mas a realidade é implacável e muitos, por falta de opções, acabam nesse caminho, no intuito de salvar o negócio ou, pelo menos, algum patrimônio. E aqui reside outro perigo: as dívidas garantidas por alienação fiduciária não entram na Recuperação Judicial. E isso pode ser um grande problema em alguns casos e até inviabilizar essa estratégia para a reestruturação das dívidas.
Essa Lei de Garantias de 2023 trouxe uma mudança perigosa: agora, com o atraso de uma única parcela, o banco pode considerar que todas as outras parcelas venceram de uma vez. Isso significa que, em vez de cobrar só a parcela atrasada, ele pode exigir a dívida inteira, acelerando ainda mais a consolidação da propriedade.
§ 6º O inadimplemento de quaisquer das obrigações garantidas pela propriedade fiduciária faculta ao credor declarar vencidas as demais obrigações de que for titular garantidas pelo mesmo imóvel, inclusive quando a titularidade decorrer do disposto no art. 31 desta Lei.
Se a consolidação da propriedade em nome do credor não fosse feita de modo tão rápido, ou seja, se fosse como era na hipoteca antigamente (digo antigamente porque, pelo Marco Legal das Garantias, também passou a poder utilizar a forma extrajudicial), isto é, se fosse feita perante o Poder Judiciário, com todas as garantias constitucionais do devido processo legal, você teria tempo para se reorganizar e entrar num acordo com o credor.
É fato que as taxas de juros são estipuladas pelos bancos de modo diretamente proporcional aos riscos envolvidos nas operações. Por isso é que financiamentos garantidos por alienação fiduciária geralmente possuem taxas de juros mais baratas. Mas, a que custo? Eu respondo: ao custo de praticamente não ter direito de defesa caso você tenha qualquer dificuldade e atrase nem que seja uma única parcela. Esteja consciente disso antes de optar por oferecer seus bens como garantia em alienação fiduciária.
Há produtores rurais que já são atentos a isso e se negam entregar suas propriedades em alienação fiduciária, negociando alternativas com os bancos e as cooperativas, porém, é uma minoria.
O RISCO OCULTO: PERDA RÁPIDA DA PROPRIEDADE
Ocorrendo o atraso na parcela, o procedimento é basicamente o que descreverei a seguir.
O credor solicita ao Cartório de Registro de Imóveis que notifique o devedor para pagar a dívida em até 15 dias, incluindo o valor da parcela mais multas, juros e outros encargos, conforme parágrafo primeiro do artigo 26 da Lei 9.514/97 (sempre com as alterações do Marco Legal das Garantias):
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, o devedor e, se for o caso, o terceiro fiduciante serão intimados, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do registro de imóveis competente, a satisfazer, no prazo de 15 (quinze) dias, a prestação vencida e aquelas que vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive os tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel e as despesas de cobrança e de intimação.
Nesse momento, há dois caminhos para o devedor que foi notificado: (1) purgar a mora, isto é, pagar as parcelas em atraso, com todos os acréscimos, ou (2) não.
Se houver a purgação da mora (pagamento), o oficial do registro de imóveis averbará no registro que houve o pagamento e o contrato volta ao normal, conforme parágrafo quinto do artigo 26: Purgada a mora no Registro de Imóveis, convalescerá o contrato de alienação fiduciária.
Se o devedor não pagar a dívida, o cartório vai certificar a ausência do pagamento, averbará na matrícula do imóvel a consolidação da propriedade em nome do credor, nos termos do parágrafo 7º do artigo 26 da Lei 9.514/97.
Em seguida, a lei exige que no prazo de 60 dias a contar do fim do prazo para quitação, o credor promova o leilão público do imóvel. Serão realizados dois leilões na tentativa de conseguir o melhor valor possível para o imóvel. O devedor deverá ser comunicado desses leilões no endereço que consta no contrato, sob pena de nulidade.
Desde a consolidação da propriedade em favor do credor até a data da realização do segundo leilão, abre-se uma janela de oportunidade para o devedor que terá direito de preferência para adquirir o imóvel pelo valor da dívida mais todas as despesas.
Não exercido esse direito de preferência pelo devedor, sendo o imóvel arrematado em leilão por valor superior à dívida, será devolvido ao devedor a quantia que exceder o necessário para a quitação da dívida e todas as despesas e encargos.
Se o valor arrecadado no leilão não for suficiente para quitar a dívida, continua a obrigação do devedor, que poderá sofrer processo judicial de execução.
Se ninguém arrematar o imóvel nos leilões, o credor poderá ficar com o bem e a dívida será considerada quitada. Porém, há um perigo no dispositivo que trata disso.
§ 5º Se no segundo leilão não houver lance que atenda ao referencial mínimo para arrematação estabelecido no § 2º, o fiduciário ficará investido na livre disponibilidade do imóvel e exonerado da obrigação de que trata o § 4º deste artigo.
Por que é perigoso? Porque se o credor ficar com o bem para si, mesmo que ele seja avaliado em valor superior à dívida, não precisará devolver qualquer quantia ao devedor.
Sendo o imóvel arrematado por terceiro num dos leilões ou o credor fiduciário ficando com ele, o caminho a seguir é eles adentrarem na posse do imóvel.
Em outros tempos, seria um processo judicial às vezes longo e demorado, mas o Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23) também trouxe inovação quanto a isso: comprovada a consolidação da propriedade, a reintegração ou imissão na posse será concedida liminarmente, com prazo para desocupação de 60 (sessenta) dias:
Art. 30. É assegurada ao fiduciário, ao seu cessionário ou aos seus sucessores, inclusive ao adquirente do imóvel por força do leilão público de que tratam os arts. 26-A, 27 e 27-A, a reintegração na posse do imóvel, que será concedida liminarmente, para desocupação no prazo de 60 (sessenta) dias, desde que comprovada a consolidação da propriedade em seu nome, na forma prevista no art. 26 desta Lei.
A situação é tão brutal contra o devedor – por isso que é uma lei considerada feita “sob encomenda” dos bancos…, que mesmo que ele tenha ações judiciais discutindo o contrato ou ilegalidades no leilão, ainda assim será concedida a reintegração de posse e eventual direito que o devedor conseguir provar, não será mais o caso de ter novamente a posse e propriedade do imóvel, mas receberá indenização por perdas e danos:
Parágrafo único. Arrematado o imóvel ou consolidada definitivamente a propriedade no caso de frustração dos leilões, as ações judiciais que tenham por objeto controvérsias sobre as estipulações contratuais ou os requisitos procedimentais de cobrança e leilão, excetuada a exigência de notificação do devedor e, se for o caso, do terceiro fiduciante, não obstarão a reintegração de posse de que trata este artigo e serão resolvidas em perdas e danos.
Ou seja, o devedor será “expulso” da propriedade mesmo que o contrato esteja cheio de abusos nas taxas de juros, multas e outras cobranças excessivas que contribuíram para o devedor ficar inadimplente, e mesmo que o procedimento no cartório tenha sido feito de modo ilegal, salvo apenas se foi uma questão de falta de notificação do devedor.
Imagine a situação em que um produtor rural conseguiu ganhar na justiça o reconhecimento de ilegalidades no contrato e que foram relevantes para seu estado de inadimplência, já tendo decisão favorável em primeira e segunda instância, porém o credor recorreu ao Superior Tribunal de Justiça para “ganhar tempo”, se for seguida a letra fria da lei, mesmo assim será retirado à força da propriedade.
CONCLUSÃO: O BENEFÍCIO NÃO VALE O RISCO
Conforme tentei expor ao longo deste texto, a alienação fiduciária representa inúmeras vantagens apenas para o credor. Pois, para o devedor, o único benefício é a taxa de juros normalmente mais acessível, no restante, apenas riscos e problemas. Por isso é que insisto: se puder, fuja da alienação fiduciária.