Exigência de garantias abusivas pelos bancos e a possibilidade de revisão judicial

17 de julho de 2025
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Introdução

O acesso ao crédito rural é de grande importância não apenas para o agronegócio, mas para todos nós, brasileiros, pois impacta diretamente no crescimento do país, na geração de empregos e na segurança alimentar.

Não é sem motivos que a Constituição Federal tem um capítulo inteiro para tratar da Política Agrícola (art. 184 a 191) e na Lei Agrícola (Lei 8.171/91), o crédito rural foi indicado como um dos instrumentos de política agrícola em nosso país (inciso XI, art. 4º).

Segundo estudos do CPI/PUC-Rio, aumentar em 1% a disponibilidade de financiamento rural, pode resultar em um aumento de 0,17% do PIB agropecuário. Não pense que é pouco, esses percentuais representam muitos milhões de reais, empregos e desenvolvimento, pois o PIB do agronegócio representa 24,8% (2022) do PIB brasileiro.

Por isso, é de grande relevância que os produtores rurais tenham acesso ao crédito. Todos ganhamos com isso.

Apesar disso, existem diversas práticas do mercado financeiro que vão na contramão desse entendimento, dificultando ou até impossibilitando o financiamento da atividade agrícola. Neste momento, quero abordar a silenciosa prática de exigirem garantias excessivas.

Por exemplo, recentemente me deparei com mais um desses comuns casos: ao liberar um crédito rural de R$ 1.870.000,00, com recursos livres, ou seja, da própria instituição financeira, o banco ficou com garantias de R$ 18.900.000,00. Ou seja, mais de 10x o valor da dívida…

Qual o problema disso? O produtor rural fica impossibilitado ou, pelo menos, com mais dificuldade para usar a mesma garantia para conseguir outros créditos e financiamentos feitos sem garantias, quando concedidos, possuem taxas mais caras diante do maior risco para a instituição financeira, encarecendo toda a cadeia produtiva. Esse é um dos problemas, ainda poderia acrescentar que engessa o patrimônio, cria uma dependência de um único credor, além de inviabilizar utilização da garantia em operações mais modernas.

O que diz a lei?

Temos diversas normas que podem ser usadas para embasar juridicamente o direito à revisão e redução de garantias excessivas. Conforme demonstrarei em seguida, esse direito é possível de ser facilmente construído a partir de uma interpretação minimamente lógica e razoável.

O inciso III do artigo 170 da Constituição Federal diz expressamente que a ordem econômica – e nela estão incluídas as instituições financeiras, deve observar entre outros princípios a “função social da propriedade”.

Já o Código Civil traz diversos dispositivos que afunilam ainda mais o direito aqui tratado. Citarei apenas dois. O artigo 421 que diz que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”, e o artigo 422 que ordena aos contratantes observar o princípio da boa-fé.

O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, no inciso IV, estabelece que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou que estabeleçam obrigações abusivas.

A Lei 4.829/65, que institucionalizou o Crédito Rural, diz que ele será distribuído visando o “bem-estar do povo”. A Lei 8.171/90, que instituiu a Política Agrícola em nosso país, elegeu o crédito rural como um de seus instrumentos.

Mas um dos principais dispositivos é o artigo 64 do Decreto Lei 167/67, que trata especificamente dos títulos de crédito rural. Vejamos a redação:

Art. 64. Os bens dados em garantia assegurarão o pagamento do principal, juros, comissões, pena convencional, despesas legais e convencionais com as preferências estabelecidas na legislação em vigor.

É cristalino que esse dispositivo coloca um limite no quanto as instituições financeiras podem exigir de garantia: o necessário para o pagamento da dívida com todos os acréscimos legais.

Vou insistir aqui. Uma garantia que exceda injustificavelmente o necessário para cobrir:

– principal;

– juros;

– comissões;

– pena convencional;

– despesas legais e

– despesas convencionais.

Deve ser considerada abusiva e, consequentemente reduzida. Como eu citei na introdução, não é raro me deparar com garantias que são cinco, dez ou mais vezes o valor da dívida. Gerando uma série de problemas ao produtor.

Enfim, os dispositivos acima citados, indicam de maneira clara que os contratos precisam ser equilibrados, sem desvantagem excessiva para as partes e estar em sintonia com função social que se espera deles, sendo perfeitamente cabível anular ou revisar cláusulas que se mostrem injustas ou exageradamente desequilibradas.

E qual seria o objetivo que poderíamos indicar dentro de tudo isso? Ou seja, qual objetivo interliga política agrícola, crédito rural e contratos: a segurança alimentar e o desenvolvimento de nossa nação. Esse é o escopo maior, garantir alimentos a preço acessível, preservando consequentemente a dignidade da pessoa humana.

O artigo 6º da CF diz que que alimentação é um direito social. Já o inciso VIII do artigo 23 diz que é competência comum da União, dos Estados, do DF e dos municípios: fomentar a produção agrícola e organizar o abastecimento alimentar. E um desses instrumentos, como já escrevi acima, para fomentar a produção agrícola é o crédito rural, conforme inciso I, art. 187.

Portanto, são diversos dispositivos que permitem extrair a possibilidade de revisar um contrato na parte relacionada à exigência excessiva de garantia e que, com isso, colocam o produtor rural em desvantagem exagerada, dificultando o acesso dele a outras fontes de crédito e com custo mais barato, impactando e encarecendo assim, em última instância, a produção agrícola.

A história se repete

Quero trazer um fato histórico, que aconteceu em 2008, para corroborar tudo isso.

Nos anos de 2005, 2006 e 2007 o agronegócio passou por semelhante período de dificuldades financeiras, tanto pelas questões climáticas, como também pelas variações nos preços de insumos, dos grãos e a forte variação cambial, resultando em endividamento generalizado no setor.

Em resposta, foi edita a Medida Provisória 432/2008, convertida na Lei 11.775/2008. Essa lei trouxe um alívio ao agronegócio ao autorizar repactuação e parcelamento de dívidas rurais vencidas ou vincendas; estabelecer critérios de descontos, conforme capacidade de pagamento e – aqui o ponto para o qual quero chamar atenção, previu o direito à revisão e redução das garantias.

Tudo isso tinha um objetivo muito claro: criar condições para que o produtor pudesse voltar a ter acesso ao crédito rural.

O dispositivo que trata da revisão e redução das garantias é o seguinte:

Lei 11.775/2008
Art. 59.  São asseguradas ao mutuário de operações de crédito rural: 
I – a revisão das garantias; 
II – a redução das garantias em caso de excesso. 

Algo semelhante aconteceu em outra época de crise no agronegócio, na década de 1990, quando houve a securitização das dívidas por meio da Lei 9.138/95. E no inciso VI, parágrafo 5º, do artigo 5º dessa lei, havia expressão proibição de as instituições exigirem garantias adicionais e ainda que seriam liberadas aquelas que excedessem os valores à época regulamentados.

Ou seja, com esses fatos históricos e dispositivos legais, espero ter evidenciado como a questão das garantias no crédito rural tem especial relevância para o desenvolvimento do agronegócio, consequentemente, da segurança alimentar e até mesmo do desenvolvimento do PIB nacional, sendo fácil extrair do ordenamento jurídico brasileiro o direito de revisar e/ou reduzir as garantias contratuais excessiva, dados os efeitos nocivos como já repisado acima.

Aliás, o próprio Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23) que, apesar de não tratar diretamente da possibilidade de redução de garantias excessivas, traz uma série de medidas que visam racionalizar o uso das garantias, num evidente esforço legislativo de reduzir exigências desproporcionais de garantias.

Jurisprudência

1 –

(…) Em casos concretos, eventual excesso de garantia poderá ser decotado pelo Judiciário quando desarrazoado, em observância do que dispõe o art. 64 do Decreto-Lei n. 167/1967, segundo o qual “os bens dados em garantia assegurarão o pagamento do principal, juros, comissões, pena convencional, despesas legais e convencionais com as preferências estabelecidas na legislação em vigor”. 3. Recurso especial provido. (STJ – REsp: 1315702 MS 2012/0059524-0, Relator.: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 10/03/2015, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/04/2015)

Nesse caso envolvendo o Banco do Brasil, o Superior Tribunal de Justiça foi enfático e não deixou margens para dúvidas acerca do direito à redução das garantias nos casos em que se verificam excessos, sem que isso signifique exagerada interferência do Poder Judiciário nas relações contratuais, pois não há direito absoluto em nosso ordenamento jurídico, nem mesmo o pacta sunt servanda, pois os abusos devem ser rechaçados.

2 –

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO – CDC – APLICABILIDADE – BENS OFERTADOS EM GARANTIA – VALOR SUPERIOR À DÍVIDA CONTRATADA – EXCESSO DE GARANTIA CONTRATUAL – SUCUMBÊNCIA MÍNIMA – NÃO OCORRÊNCIA – MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. Aplica-se o Código de Proteção e Defesa do Consumidor ao contrato bancário, pois o CDC abrange as atividades de natureza bancária, financeira e de crédito, nos termos do art. 3º, § 2º do referido diploma legal. O excesso de garantia contratual sobre os bens do Autor implica em evidente desequilíbrio contratual entre os contratantes, quando demonstrado que os valores dos mencionados bens ultrapassam, em muito, o montante da dívida contratada. (…).(TJ-MG – AC: 10428050015034001 Monte Alegre de Minas, Relator.: Marcos Henrique Caldeira Brant, Data de Julgamento: 18/11/2020, Câmaras Cíveis / 16ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 27/11/2020)

Comentários:

Nesse caso julgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, envolvendo o Banco Bradesco, foi asseverado que o princípio do “pacta sunt servanda” vêm sofrendo mitigações diante de outros princípios como o da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do dirigismo contratual.

Nesse caso, as garantias eram em valor superior ao dobro da dívida e, por isso, o Tribunal entendeu pelo excesso e garantiu a redução:

(…) Trata-se, portanto, contratação com saldo devedor no importe de R$404.814,00 (quatrocentos e quatro mil e oitocentos e quatorze) enquanto que as garantias dadas pelos Autores/Apelados perfazem respectivamente R$627.894,90 (quantia representada por uma nota promissória) e R$ 291.000,00 (quantia representada por 13 máquinas agrícolas). (…)

O Relator do caso ainda pontuou:

Evidente, pois, o prejuízo suportado pelos Autores/Apelados no caso em exame, restando caracterizado o desequilíbrio contratual.
Trata-se de hipótese que gera onerosidade excessiva ao devedor, pois os bens destinados à garantia real ficarão indisponíveis para outras relações jurídicas, mesmo com as amortizações parciais ou quase totais da dívida, nos termos do art. 1.421 do Código Civil.

Diante disso, o julgamento foi no sentido de “declarar o excesso de garantia do Instrumento Particular de Confissão de Dívida com Garantia de Alienação Fiduciária e Outras Avenças…”, confirmando a sentença de primeiro grau.

3 –

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO REVISIONAL – (…) CONTRATO GARANTIDO POR CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – RECONHECIMENTO DE EXCESSO DE GARANTIA FRENTE AO VALOR DEVIDO – REDUÇÃO NECESSÁRIA – (…).Em situações excepcionais, em que a garantia de alienação fiduciária supera significativamente o débito por ela assegurado, deve ser reconhecido o excesso. (…).(TJ-MT 10009851620188110041 MT, Relator.: RUBENS DE OLIVEIRA SANTOS FILHO, Data de Julgamento: 15/12/2021, Quarta Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/12/2021)

Essa decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso toca num ponto importante: a redução de garantias contratuais é medida excepcional. Por isso, deve-se ter muito cuidado ao ingressar com essa ação, pois regra geral, as cláusulas contratuais são válidas e apenas em casos de gritante injustiça e desequilíbrio é que o Poder Judiciário costuma intervir. Além do mais, em caso de improcedência do pedido, ainda sofrerá com o aumento da dívida por conta dos ônus de sucumbência (honorários etc.).

Nesse caso específico, o crédito que o Banco Safra liberou foi de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais), sendo que recebeu em garantia (alienação fiduciária) um imóvel avaliado pelo banco em R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), entretanto, conforme apurado em laudo pericial feito no decorrer do processo, o valor verdadeiro do imóvel é de R$ 15.500.000,00 (quinze milhões e quinhentos mil reais). Também atualizaram o valor da dívida e chegaram a quantia de R$ 2.683.804,17 (dois milhões, seiscentos e oitenta e três mil, oitocentos e quatro reais e dezessete centavos).

Ou seja, o banco tinha uma garantia equivalente a 5,77 vezes o valor total da dívida.

Diante disso, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso confirmou sentença que determinou “a redução da garantia no contrato no valor total da dívida de R$ 2.683.803,17 (…), não cabendo restrição fiduciária sobre a área total (…).

4 –

(…). ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE GARANTIA. ACOLHIMENTO. GARANTIA HIPOTECÁRIA QUE EXCEDE EM MAIS DE 04 (QUATRO) VEZES O VALOR DA DÍVIDA CONTRATADA. POSSIBILIDADE DE REVISÃO COM DECOTE DO EXCESSO. ATENDIMENTO AOS PRINCÍPIOS DA BOA FÉ OBJETIVA E DA MENOR ONEROSIDADE AO DEVEDOR. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA NESSE PONTO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.(TJ-RN – AC: 01205830420138200106, Relator.: DILERMANDO MOTA PEREIRA, Data de Julgamento: 13/06/2023, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: 16/06/2023)

Nesse caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, o Banco do Nordeste recebeu em garantia hipotecária oito imóveis avaliados pela própria instituição em R$ 15.074.500,00, sendo que a dívida total era no importe de R$ 3.631.615,64.

Diante disso, entendeu “evidenciada a desproporcionalidade da garantia hipotecária exigida” capaz de justificar a relativização do princípio do pacta sunt servanda e assim “revisar a garantia contratual exigida (…) de modo a autorizar o levantamento da hipoteca dos imóveis cujos valores atualizados superem o do principal e acessórios da dívida (…)”.

5 –

APELAÇÕES CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE REDUÇÃO DE GARANTIAS HIPOTECÁRIAS C/C PEDIDO DE TUTELA DE EVIDÊNCIA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. APELAÇÃO 01. PRETENSÃO DE RECONHECIMENTO DA LEGALIDADE DO CONTRATO. (…)POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DE GARANTIA HIPOTECÁRIA. EXCESSO FLAGRANTE. POSSIBILIDADE DE EVENTUAL REVISÃO SE CONSTATADA A INSUFICIÊNCIA. (…) (TJPR – 16ª Câmara Cível – 0030673-88.2019 .8.16.0001 – Curitiba – Rel.: DESEMBARGADOR PAULO CEZAR BELLIO – J . 01.03.2023)(TJ-PR – APL: 00306738820198160001 Curitiba 0030673-88.2019 .8.16.0001 (Acórdão), Relator.: Paulo Cezar Bellio, Data de Julgamento: 01/03/2023, 16ª Câmara Cível, Data de Publicação: 04/03/2023)

Conclusão

Espero ter ficado claro o direito de o devedor ter reduzidas as garantias que ofereceu, ou, melhor dizendo, que lhes foram exigidas, quando evidenciado excesso a configurar um abuso de direito por parte da instituição financeira.

Apesar de existirem princípios, dispositivos de leis e jurisprudência favorável, não quero que o devedor fique com a errada crença de que é um caminho fácil a ser percorrido. A tendência do Poder Judiciário será de não interferir no contrato por causa do pacta sunt servanda (“os pactos devem ser cumpridos”). Contudo, em casos de evidente abuso e excesso, poderá, como já vimos, haver a redução das garantias.

A decisão por entrar ou não com uma ação judicial buscando esse direito deve ser ponderada com muito cuidado, porque se o resultado for desfavorável, restará ao devedor os custos da sucumbência (honorários, custas, despesas etc.).

Mas é uma questão de avaliar cenários: (1) de um lado o risco de aumentar a dívida se o resultado for negativo e (2) de outro lado a liberação de parte do patrimônio oferecido em garantia, o que poderia possibilitar acesso a novas fontes de crédito, o que, em alguns casos, é imprescindível até para a própria continuidade do negócio.

Espero ter contribuído com informações relevantes para aqueles que estão passando por momentos de dificuldade econômica e precisam avaliar com cuidado todas as opções de como manter suas linhas de crédito e, uma delas, é a que aqui abordei.

Sobre o Autor

Henrique Lima

  • Henrique Lima é advogado com atuação focada no atendimento a problemas jurídicos envolvendo divórcios, inventários, direito agrário, contratual, dívidas bancárias, tributário e responsabilidade civil.
  • Sócio-fundador da Lima & Pegolo Advogados Associados S/S.
  • Mestre em direito e pós graduado (lato sensu) em direito civil, constitucional, família e sucessões, consumidor e trabalhista. Autor e co-autor de livros jurídicos e também de desenvolvimento pessoal.
  • Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
  • Membro da Comissão de Direito do Agronegócio do Conselho Federal da OAB.
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