A dúvida é recorrente entre produtores rurais e empresários que atravessam momentos de dificuldade: é possível pedir recuperação judicial quando quase todas as dívidas são bancárias?
A resposta exige cautela e estratégia.
1. O que a lei diz?
A Lei nº 11.101/2005 não impede que um devedor peça recuperação judicial mesmo quando seus únicos credores são instituições financeiras. Não há, no texto legal, qualquer restrição que condicione o pedido à diversidade de classes ou à existência de fornecedores, trabalhadores ou outros credores.
Portanto, juridicamente é possível ingressar com Recuperação Judicial (RJ) mesmo devendo essencialmente a bancos.
2. O problema não é jurídico. É estratégico.
Embora a lei permita, a prática revela enorme dificuldade de aprovação do plano quando a totalidade dos votos está nas mãos dos bancos. Isso ocorre porque:
- Bancos, em regra, rejeitam planos que alongam prazos, reduzem juros ou alteram garantias;
- Se todos os votos pertencem a instituições financeiras, a chance de reprovação é altíssima;
- A depender da configuração das garantias, eles podem inviabilizar qualquer negociação em assembleia.
Em alguns casos específicos, quando a falência significaria recuperação mínima ou nula de crédito para os bancos, a resistência pode diminuir. Mas são exceções.
3. A importância de mapear todos os credores
É comum o empresário focar apenas nos grandes contratos bancários e esquecer que, na RJ, todos os credores sujeitos devem ser listados: fornecedores, prestadores de serviços, trabalhadores, arrendadores, proprietários de máquinas, parceiros agrícolas etc.
Esse levantamento é decisivo porque a formação das classes de credores influencia diretamente na aprovação do plano.
A Lei 11.101/2005 estabelece quatro classes (art. 41):
- Trabalhistas e acidentários (Classe I);
- Detentores de garantia real (Classe II);
- Quirografários, com privilégios geral ou especial, incluindo bancos sem garantia real (Classe III);
- Microempresas e empresas de pequeno porte (Classe IV).
Se os bancos não possuem garantia real, situam-se como quirografários. Se forem os únicos integrantes da classe, não haverá votos divergentes dentro dela, o que impede, em muitos casos, o uso adequado do cram down.
4. O risco real: ficar impedido de aprovar o plano pelo cram down
O cram down (art. 58, §1º, da Lei 11.101/2005) permite que o juiz homologue o plano mesmo sem aprovação de todas as classes, desde que cumpridos requisitos mínimos, entre eles:
- Aprovação em pelo menos uma classe (quando houver mais de duas);
- Alcance de determinados quóruns dentro da classe que rejeitou o plano.
Se existir apenas a classe dos bancos e ela rejeitar o plano, não há outra classe para cumprir o requisito legal, o que inviabiliza a homologação judicial forçada.
É verdade que parte da jurisprudência admite alguma flexibilização, mas há limites claros, e contar com isso desde o início é extremamente arriscado.
5. O cenário real mais comum
Na prática, a situação não costuma ser de dívidas exclusivamente bancárias, mas sim de dívidas majoritariamente bancárias, que chamam mais a atenção pelo alto impacto financeiro e pelos juros que se acumulam de forma agressiva.
Quando existem outros credores, ainda que menores, a dinâmica processual muda completamente, abrindo espaço para:
- formação de mais de uma classe;
- aprovação do plano por outras categorias;
- utilização eficaz do cram down;
- reestruturação ampla e realista da operação.
Nesses casos, o fato de os bancos votarem contra não impede o sucesso da recuperação.
6. Conclusão: é possível, mas depende do caso
Sim, é possível pedir recuperação judicial mesmo quando a maior parte das dívidas está concentrada em bancos. Contudo:
- A análise estratégica da estrutura de credores é indispensável;
- Apenas dívidas bancárias tornam a aprovação do plano muito difícil;
- A existência de outras classes fortalece o devedor e viabiliza o cram down;
- A decisão final não é dos bancos, mas do Poder Judiciário, que considera a manutenção de empregos, a continuidade da atividade produtiva, o recolhimento de tributos e o impacto socioeconômico.
A recuperação judicial é mais do que um instrumento jurídico: é uma estratégia de preservação da empresa e da sua função social. Por isso, cada caso deve ser submetido a uma análise técnica criteriosa antes da tomada de decisão.